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O FEMININO DAS MULHERES INDÍGENAS E A LUTA PELA RESISTÊNCIA

 

Na cultura indígena trabalhamos com o feminino porque se entende que a terra é mãe, tem alma de mulher, cuida, gesta amor, generosidade, cooperação para com os seus filhos. Ainda que maltratada pela violência de cada dia, sabe transformar dor em amor como fazem as mães que cotidianamente tem enfrentado as tristezas e dores de ver seus filhos em situações não tão agradáveis e essas dores maltratam sua alma e seu ser mulher. Caminhamos ao lado dos nossos guerreiros, não queremos estar nem a frente e nem atrás sempre ao lado nas manifestações, nas ações dentro e fora da aldeia.


Somos retrato de uma violência que cresce de forma acelerada. A cada minuto uma mulher é violentada, vítima de feminicídio seja na aldeia ou na cidade. A vida na aldeia tem outra dinâmica e forma de ser entendido, mas, nada justifica a violência que a cada ano que passa aumenta. Um fator que tem levado ao aumento da violência contra a mulher na aldeia é o alto consumo de bebida alcoólica trazida de fora da cidade para a aldeia.


Cresci numa aldeia e vivi em um tempo onde era difícil saber de um caso de feminicídio ou de qualquer outro tipo de violência contra as mulheres da aldeia. Lembro de meu pai chegar da rua e as ruas na aldeia eram poucas e vir cantando pela noite acompanhado apenas da luz do luar. Minha mãe/avó que esperava na janela já dizia: seu pai está embriagado, andou tomando umas cachaças porque só canta quando está embriagado, vamos deitar deixa ele se aconchegar pela cozinha. Meu pai chegava, não ia buscar conversa com ninguém, dormia e no outro dia estava bem.


Não se via briga de família nessa aldeia que nasci chamada Belém do Solimões do povo Tikuna. As mulheres tinham sua forma de conviver em sintonia e solidariedade, minha avó era uma benzedeira, fazia remédios, curava com ervas da mata, visitava as casas dos doentes na aldeia e até dos que não estavam doentes também para saber se estavam bem ou precisando de ajuda. Era uma mulher respeitada por todos como professora e também como aquela que fazia o bem através da cura física.

Na aldeia a cultura segue o tempo circular, obedece a narrativa contada pelas anciãs de como precisa acontecer para fortalecer a cultura, continuar sendo legado entendendo que temos uma diferença e que essa diferença nos faz povo originário resistentes de uma terrível barbárie que dizimou muitos de nós e fez nossas anciãs silenciarem seus ecos num ato gritante de revolta pela forma como seus corpos eram invadidos pela cruz e a espada dos colonizadores e com isso o Brasil foi parido desse estupro coletivo.


Alessandra Munduruku, Auricelia Arapiun e Marcia Kambeba - Imagem Arquivo
Alessandra Munduruku, Auricelia Arapiun e Marcia Kambeba - Imagem Arquivo

Na trajetória de luta dos povos originários, os marcadores de violências são crescentes, mas, um em especial chama a atenção por ser tratado com naturalidade ao ser contada uma história envolvendo a frase “minha avó foi pega no laço”. Cresci ouvindo minha mãe/avó Assunta contar sobre as diversas formas de fugas traçadas pelos povos indígenas na mata ao longo desses anos de contato. Ela falava uma frase muito frequente de se ouvir que é: “minha avó ou bisavó foi pega no laço”. “pegar no laço” significava violência sexual dos invasores para com as mulheres indígenas da época.


Se laçava as mulheres como se laça um animal e eram puxadas até o alcance do algoz, quando a mulher não morria no ato do estupro ela era morta no processo de esquartejamento, em outras circunstâncias eram violentadas e quando conseguiam fugir, o algoz mandava os seus homens atrás e eles se embrenhavam na mata com ajuda de cachorro daí surge outra expressão “minha bisavó foi pega no dente do cachorro”. Ambas as expressões são consequências de uma colonização forçada, com olhar eurocêntrico, de dominação, escravidão, de superioridade, subalternizando nossas mulheres ancestrais, utilizando de violência epistêmica e outras barbáries pelas quais povos foram dizimadas e outros foram reduzidas a poucas famílias. 


Como essa frase chega em você? Sempre escuto pessoas falarem com um certo orgulho: “tenho descendência indígena porque minha avó contava que a avó dela foi pega no laço”. Essa barbárie ficou registrado na memória de nossas ancestrais e chegou a nós como violência a ser reparada por nossas formas de luta para desconstruir imaginários estereotipados, que rememorem violências brutais. Minha avó contava com tristeza que a avó dela foi vítima dessa situação de ser “laçada”. Por ser algo forçado a avó da minha avó/mãe Assunta se negava a viver como uma não indígena e procurava manter seus hábitos de vida próprios de seu território/aldeia e muito pouco falava português e fazia uso da língua geral proveniente do Tupi o que nos mostra que ela já fazia resistência e lutava pela manutenção de sua cultura e identidade. E a resistência se estende por séculos.


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3 Comments

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Duda
Mar 03
Rated 5 out of 5 stars.

Adorei a matéria, já quero o livro! Vou recomendar

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Sílvia Letícia
Mar 03
Rated 5 out of 5 stars.

Emocionada com essa matéria

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Thomas Luz
Mar 03
Rated 5 out of 5 stars.

Ótima matéria.

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