Por: Plinio de Arruda Sampaio Junior*
O deslocamento do centro dinâmico da demanda agregada para o exterior e a desindustrialização – facetas inextrincáveis do processo de reversão neocolonial impulsionado pela inserção liberal na globalização dos negócios – transformaram o Brasil numa economia reflexa. Sem mecanismos endógenos de reprodução ampliada do capital e extraordinariamente vulnerável às vicissitudes dos fluxos de capitais internacionais, o desempenho da economia brasileira ficou sobredeterminado pela conjuntura internacional.
Ainda que os organismos internacionais apostem na possibilidade de um “pouso suave” para a economia mundial, após a crise provocada pela epidemia de coronavírus, as contradições que bloqueiam a acumulação de capital em escala global não foram superadas. Assim, mesmo que uma crise de maior envergadura seja evitada, na ausência de novas frentes de investimento, a economia global deve permanecer em marcha lenta. O Banco Mundial trabalha com a expectativa de crescimento do PIB na ordem de 3,2% em 2024 e de 2,7% a.a. para os próximos dois anos, bem inferior à média das duas primeiras décadas do milênio (3,8% a.a.).1
Na hipótese de aterrisagem suave e não recrudescimento do protecionismo, o comércio internacional deve continuar retraído e a internacionalização de capital em compasso de espera. A OMC estima que o volume das trocas internacionais crescerá em torno de 3% a.a. nos próximos dois anos, quase a metade do verificado no período de bonança do mercado mundial, entre 1982 e 2008, quando o comércio internacional crescia 5,8% a.a., bem acima da expansão do PIB.2 A UNCTAD3 registra que, após a grande crise de 2008, os fluxos de capitais internacionais se retraíram, afetando sobretudo as economias subdesenvolvidas. A América Latina foi a região mais afetada. Nada permite imaginar que essa situação seja revertida.4
Não obstante a previsão dos organismos internacionais de que o pior possa ser evitado, o cenário de um “pouso forçado” não pode ser descartado. As gritantes discrepâncias entre a capacidade produtiva e a capacidade de consumo da sociedade, bem como entre a acumulação produtiva e acumulação financeira, evidenciam a presença de um excedente absoluto de capital. O capital suspenso no limbo, sem perspectiva de valorização pela exploração do trabalho, está sempre sujeito à liquidação violenta. A destruição de grandes massas de capitais – produtivos e fictícios – permanece, portanto, inscrita como ameaça latente sobre a economia mundial.
Ainda que a política de administração da crise tenha evitado que a tendência à destruição de capitais se concretizasse, com intervenções fiscais e monetárias que garantiram sobrevida aos capitais zumbis, há sinais de que a crise de superacumulação se aproxima do ponto de ebulição. A taxa de lucro permanece deprimida, a hipertrofia da esfera financeira coloca em perspectiva o espectro de crise sistêmica do sistema financeiro e são muitos os indicadores de que a economia global caminha para a recessão.5
A situação da economia norte-americana é emblemática das contradições que bloqueiam a expansão da economia mundial. Mesmo tendo apresentado o maior crescimento entre as economias desenvolvidas nos últimos anos, à exceção das megacorporações que controlam as grandes empresas de tecnologia, redes sociais e energia, as corporações não financeiras norte-americanas apresentam taxa de lucro particularmente baixa, com 50% delas registrando prejuízo. Calcula-se que 42% das pequenas empresas norte-americanas estejam no prejuízo – a maior cifra desde 2020. Do lucro auferido no setor financeiro, quase a metade é composto de lucros fictícios.6
A exaustão da globalização dos negócios compromete a fuga para a frente como expediente de administração da crise, configurando um marco histórico particularmente adverso, caracterizado pela insegurança em relação à dimensão do impacto das novas tecnologias na produtividade do trabalho, pela indefinição sobre os rumos do novo padrão energético, pela divisão do mundo em blocos econômicos antagônicos, pela reorganização das cadeias de valor por parte das grandes corporações que controlam a economia global, pela instabilidade monetária e financeira gerada pela desorganização da ordem econômica internacional, pelo temor de que as rivalidades nacionais possam evoluir para conflitos bélicos entre potências nucleares e pelo acelerado agravamento da crise ambiental. A vitória avassaladora de Donald Trump nos Estados Unidos deve acelerar o desmantelamento da ordem liberal multilateral que impulsionou o desenvolvimento capitalista nas últimas quatro décadas.
Não obstante as evidências de uma situação extraordinariamente delicada, que bloqueia o acesso das economias subdesenvolvidas aos nichos nobres do mercado mundial e as marginaliza dos fluxos de capitais internacionais, as projeções para o crescimento da economia brasileira são feitas como se tudo transcorresse dentro da mais perfeita normalidade. Projeta-se o futuro como se fosse um desdobramento linear do presente. A possibilidade de agravamento da crise econômica internacional é olimpicamente ignorada. É isso que agrada os negócios. O governo federal estima uma expansão do PIB de 2,5% em 2025. O Boletim Focus do início de novembro é mais prudente. Prevê expansão de 1,9%.
Ao contrário do que vem ocorrendo desde 2021, em que o desempenho da economia brasileira tem superado recorrentemente as expectativas iniciais, o mais provável é que no próximo período ocorra o inverso. O dinamismo acima do esperado nos últimos anos foi condicionado fundamentalmente pelos efeitos multiplicadores de renda da exportação de commodities e dos gastos primários do setor público, sobretudo das entidades subnacionais. Estudo da Fundação Getúlio Vargas mostra que, sem tais gastos, o PIB de 2023 teria permanecido estancado no mesmo nível de 2019.7
As circunstâncias especiais que impulsionaram a expansão da economia brasileira se dissiparam. A tendência à baixa dos preços das commodities no mercado internacional, que deve ser reforçada pelo recrudescimento do protecionismo norte-americano, e os efeitos adversos da crise climática sobre a produtividade da agricultura brasileira comprometem o papel das exportações como motor da economia. Os gastos públicos também devem perder fôlego. Passado o período de transição para as novas regras que limitam as despesas da União com políticas públicas, os mecanismos draconianos do Novo Arcabouço Fiscal imporão a lógica do Estado mínimo na administração federal. Do mesmo modo, estados e municípios dificilmente conseguirão sustentar a taxa de elevação dos gastos do passado recente, mesmo que tenham suas dívidas renegociadas com o governo federal (como parece que ocorrerá). Por fim, ainda que eventualmente ocorra um aumento imprevisto da demanda agregada além do inicialmente estimado, a expansão da economia esbarraria na plena ocupação da capacidade produtiva. Sem investimentos que expandam as forças produtivas, a elevação de gasto redunda apenas em pressão inflacionária e desequilíbrio no balanço de pagamentos.
Qualquer que seja o desempenho quantitativo da economia nos próximos anos, um pouco acima ou abaixo da média da última década, o crescimento será medíocre e ficará muito aquém do necessário para reverter a tendência ao rebaixamento sistemático do nível tradicional de vida dos trabalhadores. Salvo conjunturas excepcionais, como o boom internacional de commodities do início do milênio, o padrão liberal-periférico de acumulação é incompatível com uma expansão vigorosa e sustentável do PIB. A combinação de taxas de juros reais excepcionalmente elevadas e ajuste fiscal permanente – pilares estratégicos da política econômica que sustentam o Real – comprime o consumo das famílias, asfixia o gasto público e deprime os investimentos, colocando obstáculos estruturais intransponíveis ao crescimento tanto pelo lado da demanda quanto da oferta agregada.8
A deterioração do quadro internacional e o total enquadramento da política econômica à filosofia do Estado mínimo estão mudando a qualidade do processo de reversão neocolonial. A submissão definitiva à lógica macabra do padrão de acumulação liberal-periférico aprofunda-se. Nesse contexto, quando se prevê o comportamento da economia brasileira, a única certeza é que todos os processos que comprometem a formação do espaço econômico nacional serão exacerbados.9 Condicionada por uma decadência catastrófica, a economia nacional caminha em marcha à ré. O futuro ruma para a transformação do Brasil numa mega feitoria moderna.
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(*) Plinio de Arruda Sampaio Junior* - Professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp. Autor do livro Crônica de uma Crise Anunciada: crítica à economia política de Lula e Dilma.
Referências
BIRD. Global Economic Prospects, June 2024.
OMC. Global Trade Outlook and Statistics, October 2014.
Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento
UNCTAD. World Investment Report, 2024. Estudo da CEPAL revela que o volume de investimentos estrangeiros na América Latina encontra-se estagnado, com tendência à baixa, desde 2012, tanto em termos absolutos quanto em relação à participação no PIB. Estima-se que tal tendência não será revertida nos próximos anos.
A situação da economia mundial é examinada por Michael Roberts em “Marx law of profitabiliy – yet more evidence” (https://thenextrecession.wordpress.com/2024/01/23/marxs-law-of-profitability-yet-more-evidence/; e em “Profits: margins anda rates” (https://thenextrecession.wordpress.com/2024/03/18/profits-margins-and-rates/)
Os indicadores sobre o estado da economia norte-americana são examinados por Michael Roberts em “A soft landing or curates eggs” (https://thenextrecession.wordpress.com/2024/06/19/a-soft-landing-or-curates-egg/); e em “The US presidential election: Part I – the economy” (https://thenextrecession.wordpress.com/2024/11/02/the-us-presidential-election-part-one-the-economy/).
Ver Borges, Bráulio, “Identificando os principais condicionantes do crescimento de cerca de 3% a.a. do PIB brasileiro”, In: https://blogdoibre.fgv.br/posts/identificando-os-principais-condicionantes-do-crescimento-de-cerca-de-3-aa-do-pib-brasileiro
Não surpreende que o pífio desempenho da economia brasileira na última década (0,7% a.a.) tenha ficado aquém da média da América Latina (0,9% a.a.).
Após três décadas de ajuste às exigências da ordem global, os efeitos do padrão de acumulação periférico liberal sobre a economia brasileira são conhecidos: (a) especialização regressiva na divisão internacional do trabalho, desindustrialização e baixa produtividade do trabalho; (b) aprofundamento da orientação primárioprimária-exportadora, estagnação do PIB e estancamento da renda per capita; (c) reprodução de formas disfarçadas de desemprego aberto, cristalização de elevados níveis de subemprego e geração de empregos de baixíssima qualidade; (d) aprofundamento da pobreza endêmica, acirramento da superexploração do trabalho e aumento da concentração de renda e riqueza; (e) perpetuação do rentismo, aumento sistemático da dívida pública, ajuste fiscal permanente e progressivo sucateamento dos serviços públicos; (f) desnacionalização da economia, crescente transferência de recursos ao exterior e elevação da vulnerabilidade do setor externo; e (g) expansão do latifúndio, crescimento do extrativismo mineral e devastação ambiental sem fim.
FONTE: TEXTO PÚBLICADO NO CONTRAPODER
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